Ontem velocidades impossíveis resolveram acessar meu caminho. Parecia minha mente, mas me confundi com um outro Deserto… Ainda sei o quanto posso passar entre pessoas sem ser visto, porque no fundo, é irrelevante nossa passagem, apenas um vento dentro de uma praia imensa, ou o rosto de um carvoeiro descendo imensidões. Nunca coube nesse Destino. Era o que podia dizer de mim mesmo, algumas vezes. Não que de verdade as palavras pudessem sentir a vertigem da Alma em fuga, ou de suas rotas mais obscuras, ainda há uma miséria para dizer nossos olhos, e isso poucos querem olhar com paciência em si mesmos. Eu fui um que resolveu olhar… Claro, há seu merecimento e sua loucura mais primitiva, como um ancião sem sabedoria na tribo mais distante. Quem olhou com carinho para o recanto deste Deserto, a que chamamos Alma, preferiu dar a algum Guardião, ou Anjo perdido na brisa do Destino. Eu resolvi olhar como a mim mesmo. Como pertencente do meu mais obscuro e glorioso. Como se o Anjo fosse a mim o meu maior Guardião das Lembranças. Como alguém poderia me roubar se eu mesmo sou o Guardião da Eternidade? Isso é o que muitos esquecem olhando para fora, buscando senhores, anjos e lunáticos que possam romper a frágil fagulha do que estão vivendo. Nisso não posso ceder. Ou retroceder. Dou a mim mesmo essa força absurda de querer vasculhar um caminho, ainda que podre, ainda que virgem e nunca visitado por uma Consciência. Dou a esse empenho minhas palavras mais escondidas. Dou a essa tarefa as horas que sequer tenho nessa Existência. Sou assim, dado a esclarecimentos. Muitas se declaram com os olhos pela poesia que devasta, outras pelo senso de humor, outras pela candura. Nunca vi uma que se rendesse à Alma. A esta dedicaria até minha morte impossível. Uma o considera lunático, um assassino em potencial, esconde sua verdade maior dos olhos alheios, e aí tudo se clarifica o quanto devemos caminhar sozinhos. A crise é a ponte maior, que desperta caminhos mais lúcidos. Resolvi abandonar a estupidez com a mesma força que se abandona seres em hospitais psiquiátricos. Dessa força conheço. É algo que queima, faz fogo e despeja as cinzas como uma maré depois da manhã… Resolvi adentrar o mais Escuro da Alma, e para isso, acreditem, não há Guardião, Mensageiro, Ladrão, nada que possa reverter nossa estupidez inicial de ter esquecido o Amor. Sim a velha palavra que todos amam e ninguém a pratica… Por isso desse relato selvagem não aparecerá mais essa palavra espúria ou dada a esquecimentos, porque é melhor esquecê-la nas frases, mas a viver nos olhos e mãos, com tamanha intensidade que mesmo o desprezo alheio, mesmo a incompreensão generalizada, mesmo uma nova reclusão, será apenas uma passagem para uma Vida maior, para uma Existência mais plena e sentida como a Verdade última de Tudo que existe. Quem se importa se hoje o pão estava ressecado? Ou se a dita pessoa amada lhe permitiu mais um punhado de dores novas? Quem realmente se importa de pegar a Alma e a levar para passear? Se essas respostas roubarem um suspiro mais acelerado, ou um esgar no rosto adoecido, talvez haja uma chance, ainda que mínima, de escolher pelo caminho do crescimento. Hoje envelheço, como Tudo que acredita no Tempo. Mas como busquei mais profundamente meu olhar mais despido, minha esquina mais nua, minha primavera mais deserta, posso dizer com extrema alegria o quanto é bom. Sim, é bom… É bom quando se corre a estrada em lágrimas por uma ninharia de sentimento, mesmo que o dia esteja convidando a sorrir sua luminosidade perpétua. É bom quando avistamos um cachorro reservado a longas horas de rua nos abanar o rabo com suas últimas forças. Ou o sorriso da criança que mal sabe que um dia irá estar na cama nua e amarrada em nome de uma explosão de emoções. Quem gostaria de ver tudo isso? Hoje, acordei com a Alma escancarada. Pela porta da frente vi dois homens. Pareciam simples. Andavam como se adivinhassem meu maior medo. Não disseram nada. Nem podiam… Dei-lhe as mãos e eles perguntaram com extrema inocência, algo que até esse momento não pude compreender totalmente: “- Você aceita?”. E respondi com a prontidão de um guerreiro sem guerra: “- Sim!”. E foi com tanta firmeza que os dois sorriram se entreolhando, mas não era deboche como a antiga mentira da saúde imperfeita, era uma amplidão que surgia naquelas bocas. Sabia que agora estava entregue a uma rota tão desfigurada para os outros que se realmente tivessem visto aquela completude que hoje me foi permitida, teriam buscado uma arma o mais rápido possível para fugir da sensação escura e avassaladora… “- Nunca sentiu isso?”, perguntou o mais afável deles, e tive que me segurar para não chorar longuíssimas horas desta pergunta feita num modo tão gentil que me assustou. “- Não… hoje é a primeira vez…”. Então, como se o mais bruto e duro deles, mas com um sorriso tão aliviador quanto o do outro, buscou uma flor branca sabe-se lá onde, porque aquela visão onírica era desprovida de qualquer característica compreensível, e a trouxe com estas palavras: “- Tenha calma agora. Entregue tudo. Tudo. Tudo será renovado. Esqueça as palavras que teve até hoje, esqueça as vivências que teve até hoje, esqueça as pessoas que viveram contigo até hoje, esqueça! Esqueça Tudo!”. “- Vocês são ladrões?” perguntei meio atônito, e eles se entreolharam longamente, mas tão longamente e num semblante que me desesperou tão fortemente que vi o que vieram fazer… “- Agora descanse. Essa sua jornada é tão perigosa que precisará de todas as energias que possa ter…”. Quando acordei, estava na minha dimensão mais improvável. Tinha os olhos agonizantes, e mesmo assim sabia que era o melhor que poderia ter acontecido. Nunca duvidei. Vi o quanto estava despreparado até hoje para ir para esse escuro… O Homem carrega sua Luz. A Luz se veste de Homem para acender o Mundo. E quando os quartos escuros nos aprisionam, só é preciso lembrar, longe de qualquer sentimento, que somos a maior de todas as luzes condensadas… Vivemos por… Desculpem, me privei de falar a palavra esgarçada nesse retalho de vidas. Hoje, e só hoje, acessei minha perturbação maior, com a força de ter nascido novamente. Sem ninguém…