Havia um corpo que cortou as águas do mar. Uma senhora de óculos de sol arrastando seus pés na areia úmida da beirada. Um homem passando o dedo entre uma notícia e outra do seu smartphone. Uma água de coco pela metade esquecida no balcão do quiosque da praia. Um grupo de gaivotas sobrevoando os céus. Um menino e seu medo das ondas. Um salva-vidas atento àquele corpo nadando entre as águas.

Passava-se um segundo. Era a cena corriqueira de uma praia filtrada pelos olhos de Laura que acabava de despertar. E o pensamento dela era no sonho que tivera.

Na história onírica, de volta para casa, Laura havia encontrado na cozinha do local um rato branco de longe. Havia deixado a casa escancarada. Ao aproximar-se revelou-se ser um outro bicho. Nada era nítido. Sua moradia aparecia cheia de imagens alucinatórias. Laura tinha aberto a porta para o estranho animal sair, mas ao ver que era um filhote de cachorro, acolheu-o passando a mão no seu corpo. Adentrando-se pelo corredor, avistou no quarto uma serpente. Era de porte estranho, ora grande com a cabeça levantada, ora de porte pequeno. Levou um grande susto. “Uma cobra – o que fazer?”, disse para si mesma. Primeiro fechou a porta do quarto. Procurou uma vassoura. Mas talvez não seria suficiente. Alguém do nada apareceu e deu uma faca. Depois essa pessoa sumiu. Era um homem esbranquiçado, um ajudante, apenas alguém.

E se ela conseguisse expulsar a cobra? Sem matá-la. Será? E se o destino iminente dela fosse ser picada pela própria cobra? Esses pensamentos vinham como um turbilhão na mente de Laura. Com um cabo de vassoura e uma faca ao alcance, abriu a porta do quarto e, pelo chão, avistou aquele corpinho se desenrolando em direção ao corredor, no ponto onde se localizavam as pernas dela. De uma mulher que nunca havia combatido com uma cobra antes. De uma mulher que havia esquecido o que era ir para à guerra e lutar pelo seu espaço. De uma mulher que era na busca incessante de ser ela mesma. De uma mulher que vivia a sua própria vida. E que mesmo deixando portas e janelas abertas, poderia escolher quem pudesse ficar em seu espaço, sua moradia, mesmo que para isso fosse necessário resistência e combate.  Aquele desafio precisava ser superado.

Afogando a dúvida de sua capacidade de resolver aquele problema encarnado na pele de uma cobra, com uma pequena faca e uma vassoura na mão, lá estava Laura parada no corredor movendo o cabo de vassoura insistentemente para que o bicho pudesse  sair de seu quarto. A víbora foi acelerada e saiu rapidinho do dormitório e entrelaçou-se no meio das pernas de Laura. Agachando-se lentamente, Laura se empodera de uma faca e faz pequenos cortes no animal, mas a faca é desafiada e a cobra num movimento de defesa contra ataca. Laura recebe uma picada na mão.

Pensou sem dor: “fui picada por uma cobra” e, em seguida: “mas não dói” e abandonou a ideia de ir a um hospital. Depois de alguns minutos – ainda no sonho – esse evento é esquecido e a cobra e tudo que vinha com ela,  sua existência, seu rastejar, sua pela mutável, sua cabeça altiva havia se transformado num corpo enxuto, mais parecido com uma corda de cores verdes e amarelas amontoada no canto da cozinha daquela estranha  casa.

Será que aquele medo, aquele corpo morto queria lhe dizer algo?

Laura acorda estendida numa toalha impregnada de areia. Sentou-se e, depois de um segundo de paisagem, pega suas coisas controlando que as novas chaves de casa continuassem onde estavam: bem seguras no bolso da costura interna de sua bolsa. Joga todos os seus pertences, toalha, garrafa de água, livro dividido pela metade. Coloca os óculos de sol e põe um vestido segura de ter matado a serpente. E que aquela picada não era nada, era boca e dentes que riam.

A mordida da serpente era tudo o que ela precisava.

Chegava o momento de voltar para aquele lugar que há muito tempo lhe esperava. Sem sofrimento e com o espírito de luta aceso, eis que havia encontrado as chaves da casa da regeneração.

Créditos da imagem: Lady with Snake – Gursewak Singh